quinta-feira, 30 de outubro de 2008

VERÔNICA DE VATE: LUÍS ANTONIO CAJAZEIRA RAMOS

LUÍS ANTONIO CAJAZEIRA RAMOS nasceu em 12 de agosto de 1956 em Salvador, onde ainda reside. Cursou Engenharia Elétrica e Agronomia na Universidade Federal da Bahia, mas abandonou ambos os cursos no penúltimo semestre. Ainda na UFBA, fez dois semestres de Medicina. Formou-se em Educação Física e em Direito pela Universidade Católica do Salvador. Mantém vínculo com a UCSAL como professor. É funcionário do Banco Central do Brasil, membro da Ordem dos Advogados do Brasil, sócio do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia e componente do conselho editorial de Iararana, revista de arte, crítica e literatura.

PRODUÇÃO LITERÁRIA: Não fez versos na infância nem na adolescência, despertando para a poesia na idade adulta. Estreou com o livro Tudo muito pouco (Cruz das Almas, 1983), mas rasgou e queimou quase toda a edição, abandonando a poesia por uma década. Voltou a escrever intensamente em 1995. Re-estreou com Fiat breu (Salvador: Edições Papel em Branco, 1996). Em seguida, lançou Como se (Salvador: Letras da Bahia, 1999), menção honrosa no Prêmio Nacional Cruz e Sousa, da Fundação Catarinense de Cultura, em 1998; Temporal temporal (Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2002), ganhador do Prêmio Nacional Gregório de Matos, da Academia de Letras da Bahia, em 2000; e Mais que sempre (Rio de Janeiro: 7Letras, 2007).

OUTRAS PARTICIPAÇÕES: Sua poesia está incluída em várias antologias, destacando-se as seguintes: 1) no Brasil, A poesia baiana no século XX (Org. Assis Brasil. Salvador: Funceb; Rio de Janeiro: Imago, 1999); 2) em Portugal, Vozes poéticas da lusofonia (Org. Luís Carlos Patraquim. Sintra: Instituto Camões, 1999); 3) na França, Voix croisées: Brésil-France (Dir. Gerard Blua. Paris: Éditions Autres Temps, 2006). Sua poesia também pode ser encontrada em sítios eletrônicos, como o Jornal de Poesia (www.secrel.com.br/jpoesia). Eventualmente, publica poemas, resenhas e outros artigos em revistas literárias e jornais.

PROJETO LITERATURA COMENTADA: Luís Antonio Cajazeira Ramos vai participar do projeto Litetatura Comentada, em Jequié - BA, no próximo sábado, dia 1º de novembro de 2008. O evento vai acontecer na Biblioteca Central Newton Pinto de Araújo, às 19h 30min. A abertura vai ser com os poetas recitadores Marcelo Nascimento e Vitor Nascimento Sá, membros do Grupo Concriz da cidade de Maracás. Luís Antonio vai falar de sua trajetória e lançar o livro Mais que sempre, sua última publicação. O evento é coordenado por André Bomfim e Lucas Ribeiro.


VÉSPERA DO DIA DOS MORTOS


Eu não amei meu pai como devia.
Houve o dia de amá-lo e não o amei.
Ele morreu, e não nasci ainda.
Amanhã levantei sem seu amor.

Nenhum conselho amigo soa seu.
Uma vida padrasta me acompanha.
Meu caminho não quis olhar pra trás.
Tão longe de meu pai me abandonei.

Nem meu, nem de ninguém, nunca fui seu.
Não me quis dar a quem eu estranhava.
Só teu colo, mamãe, era aconchego.

Do pai, resta-me um calo de silêncios.
Ai, arranco do peito o corpo estranho.
Coração, cava o chão, busca meu pai.


LUÍS ANTONIO CAJAZEIRA RAMOS

LUÍS ANTONIO CAJAZEIRA RAMOS - PANTOMIMA



PANTOMIMA


Os melhores cordeiros da fazenda
seguirão para o abate na cidade.
Os carneiros mais fracos do rebanho
serão sumariamente degolados.

O bode velho vai pro sacrifício,
por mais que seu olhar peça clemência.
Nem mesmo as cabritinhas inocentes
terão misericórdia ou esperança.

As carnes assarão ao sol: fogueira.
As peles secarão ao sol: curtume.
As vísceras suarão ao sol: carniça.
Os ossos sumirão ao sol: poeira.

Somente a ovelha negra fica impune,
enquanto o bom pastor toca sua flauta.


LUÍS ANTONIO CAJAZEIRA RAMOS

TERRÍVEL E DOCE LIRA

José Inácio Vieira de Melo

Completar um cinqüentenário é sempre motivo de comemoração. E é nesse clima que o poeta Luís Antonio Cajazeira Ramos tem vivenciado seus 50 anos. Uma prova disso é a publicação do seu novo livro, Mais que sempre (Rio de Janeiro: 7Letras, 2007), uma edição bem cuidada que faz jus ao conteúdo que envolve.
Além de trazer 24 sonetos inéditos no capítulo de abertura, Mais que sempre faz uma viagem pela obra de Luís Antonio, reapresentando poemas de seus três livros anteriores, distribuídos em cinco capítulos, arrumação esta que exigiu do poeta o cumprimento da árdua tarefa de escolher.
Assim, os poemas do livro Temporal temporal (2002), vencedor do Prêmio Nacional Gregório de Matos, da Academia de Letras da Bahia, encontram-se nos capítulos “Temporal temporal” e “Lucidez insana”. Os elegidos de Como se (1999), nas seções “Estos do estio” e “Veia Vernal”. Na seção final, “Fiat breu”, estão os poemas do livro homônimo, de 1996.
Destacar este ou aquele poema dessa antologia coesa é querer padecer do sofrimento que o autor experimentou ao fazer a sua seleção.
É certo que sonetos como “Pantomima”, “Véspera do dia dos mortos”, “O amor de minha vida” e “Religião poética” têm-se tornado emblemáticos dentro da trajetória de Luís Antonio. Mas o seu tom é tão marcante, que, ao se ler o livro, fica a impressão de que estamos diante de um único poema.
Isso acontece porque o poeta vai cerzindo seus poemas um no outro, chegando a usar o verso final de um poema logo no início do seguinte, como numa coroa de sonetos.
Outras vezes, o título de um soneto aparece bordado no âmago de outro, como é o caso de “Na solidão do campo de narcisos”.

DIVINDADE – Luís Antonio Cajazeira Ramos é um poeta terrível, como terríveis são os anjos de Rilke. O sarcasmo que perpassa seu conjunto de sonetos é de deixar qualquer leitor espantado. Não que sua lira cause aversão, mas é que ele canta tão bem e tão profundamente a miséria humana, que nos coloca na pele do poema e, por conseguinte, da miserável condição que nos é implícita.
Ler a poesia de Cajazeira Ramos é ser o Cajazeira Ramos. Deslizar pela lama de sua métrica perfeita e sentir o cheiro da origem, uma vez que somos o barro que sonha odisséias, mas que não sai do pântano.
Luís Antonio, um demiurgo gozador, ri de tudo.
Ao contrário do que possa parecer, a sua atitude poética não é de indiferença, mas de compreensão do humano. Diante do caos que o rodeia, só pode entender o grito da criação como um “fiat breu”. E o seu clamor se estende para uma divindade – não aquela de onipotente ausência, mas a que arrasta as suas asas negras sobre nós, à maneira de um Baudelaire, quando este invoca: “Oh Satã, tu que és o rei dos anjos, tenha piedade de nossa longa miséria!” Mas estas afirmações não fazem do poeta dos temporais um cantador de aberrações e das trevas.
Pelo contrário. Luís Antonio fala, o tempo todo, do amor, da solidão, do eu e da dor. Seus poemas nada têm de lúgubres, sombrios, pesados.
A grande faceta desse poeta é dizer essas coisas claramente, atribuindo a cada verso leveza e espanto, quase tudo dentro de uma forma que elegeu (ou que o elegeu): o soneto.
Que conforto é para o apreciador de poesia se deparar com um poeta da estatura de Luís Antonio Cajazeira Ramos, que dialoga com a tradição, mas que, sobretudo, com voz própria e firme, atualiza e renova o discurso poético e inova no soneto, dando uma contribuição singular para essa forma dentro da poesia brasileira contemporânea.
Resta, então, ao leitor, experimentar a intensidade dessa poesia, caminhar “na solidão do campo de narcisos” e perceber que o seu tempo, leitor, já passou e que você nem se deu conta. Diante desse lirismo tão irônico, no entanto, não é preciso atormentar-se. A voz do poeta, que penetrou na sua ferida, agora vem e “enquanto a nuvem se exauria aflita”, “enquanto o bom pastor toca sua flauta”, “enquanto eu busco, imperfeito, a poesia”, “um novo amor convido para a dança”.


Resenha publicada no jornal A Tarde Cultural em 5 de maio de 2007, em Salvador.

PROJETO TRAVESSIA POÉTICA - A CASA DOS MEUS QUARENTA ANOS EM FEIRA DE SANTANA

Amanhã, 31 de outubro de 2008, estarei na cidade de Feira de Santana para participar do projeto Travessia Poética, evento organizado pelos meus amigos poetas Adriano Eysen e Cleberton Santos. Tenho a satisfação de ser o primeiro poeta convidado pela dupla, o que vai me proporcionar conhecer Asa Filho e o seu tão comentado espaço Cidade da Cultura. No evento lançarei meu cd A casa dos meus quarenta anos e recitarei poemas, vários poemas, meus e dos meus irmãos – os poetas de todo mundo. Levarei também meu livro A infãncia do Centauro e três pôsteres com poemas meus ilustrados pelo grande artista plástico feirense Juraci Dórea. É isso.

JIVM

domingo, 26 de outubro de 2008

JIVM - PRESENÇA

Fotógrafo: Ricardo Prado
P R E S E N Ç A
Para Carlos Moisés Soglia de Melo


Estar contigo, Moisés, e atravessar o túnel,
atravessar o espelho e me estilhaçar,
e beber o leite das estrelas.

Antes de cruzar o mar do esquecimento
soprar meus nomes para ti,
imprimir meus passos no teu ser.

Estar contigo, Moisés, e ser um só,
e reconhecer meu pai na memória de tua íris.
Estarás comigo ao chegar a hora derradeira.


JOSÉ INÁCIO VIEIRA DE MELO

JIVM - BARCO

Fotógrafo: Ricardo Prado

B A R C O
Para Carlos Moisés Soglia de Melo


Meu filho, cada lágrima que brota
deste semblante aflito, vem do mar
que trago dentro de mim, que devora
e afoga e que também é calmaria;
e, lá no meio desse mar, um barco.

Meu filho, toma aqui a tua herança:
aquele barco no meio do mar.
Abre as velas, “navegar é preciso”,
que os ventos te conduzam venturoso!

Abre as velas de teu peito!
segue a Estrela do Oriente!


JOSÉ INÁCIO VIEIRA DE MELO

segunda-feira, 20 de outubro de 2008

VERÔNICA DE VATE: CARLOS MOISÉS SOGLIA DE MELO

CARLOS MOISÉS SOGLIA DE MELO nasceu em Jequié-BA, em 26 de outubro de 2000. Viveu os primeiros três anos em Salvador, onde estudou na Escolinha Curumin. Morou dois anos em Palmeira dos Índios, Alagoas; por lá estudou no Colégio Cristo Redentor. Em dezembro de 2005 foi morar em Jequié. Estudou no Educandário Santa Therezinha. Atualmente cursa a 2ª série, no Colégio Dom Pedro II. Que currículo tem esse meu filho!!!
E Que foto mais linda é essa! Vanessa Vitória e meu filho Carlos Moisés. Eles estão na nascente do rio Jiquiriçá, um lugar sagrado, como sagrado é o coração de uma criança. Vivi é filha do meu grande amigo Edmar Vieira, professor, poeta e diretor de cultura do município de Maracás. No próximo dia 26 de outubro meu filho Moisés vai completar 8 anos de idade. Que satisfação, ser pai de um garoto tão especial, tão amigo, tão belo e poeta. Que Deus ilumine seu caminho.

JIVM



O PÃO VOADOR

O pão voa ao nosso redor.
O pão voa tão alto que vai pra lua.

CARLOS MOISÉS SOGLIA DE MELO

CARLOS MOISÉS SOGLIA DE MELO - O CAFÉ ESTRANHO


O CAFÉ ESTRANHO

O café é como vidro, quando cai quebra.
O café é gelo, quando vê o Sol, derrete.
Mas quando vê a Lua, brilha.

CARLOS MOISÉS SOGLIA DE MELO

O CRESCIMENTO DO CENTAURO - UM PANORAMA DA POESIA DE JOSÉ INÁCIO VIEIRA DE MELO

Vitor Nascimento Sá




Do silêncio, de lá é que surge a palavra de José Inácio Vieira de Melo. Como o vazio que toma conta dos viajantes, o silêncio invadiu a alma do poeta quando em fecundação, ainda na construção do seu primeiro livro. O que torna a poesia de José Inácio tão forte e incisiva é o fato de que ele compreende, desde cedo, o que compõe a gênese de qualquer escritor: o seu próprio silêncio, componente que revela a inquietude dos que refletem sobre si e sobre o mundo. Porém, mais que calar-se, o que o forma é a capacidade de transformar o silêncio em símbolo. Por isso é que ele se inaugura (Códigos do Silêncio, 2000) com uma poesia que revela toda a sua capacidade de codificar os próprios segredos.

O que mais tem falado em mim é o silêncio,
mas um silêncio plural – de fogo –
que com sua língua escarlate abrasa as palavras
e as queima antes de serem.
(...)
O silêncio, este que fala e de que tanto falo,
é um hieroglífico poema,
e estes versos: tradução e codificação.

Depois da descoberta dos signos de seu sigilo, continuou a escrever. E se misturou às vozes de outros seres, deixou que usassem sua garganta para o ecoar de outros versos: versos patativos, cabralinos, bíblicos. Foi assim que gerou e pariu Decifração de Abismos (2002) e A terceira Romaria (2005).
Agora, o poeta já está no seu quarto livro: A Infância do Centauro (São Paulo: Escrituras Editora, 2007). Nos dois últimos capítulos dessa publicação, incluiu cinco poemas do seu primeiro livro, quinze do segundo e vinte do terceiro. Aliás, ele já havia feito algo semelhante em A terceira Romaria. Parece que faz questão de mostrar como tem sido sua trajetória.
Vieira de Melo nunca foi um formalista, nunca se prendeu a esta ou aquela corrente literária, nem tem dado, até o momento, mostras de que pretende fazer isso. Embora não esconda sua predileção pelos versos livres, também não se deixou levar pelos pseudo-vanguardistas que macaqueiam caricaturalmente as rupturas propostas na década de 20, evidentemente ultrapassadas. Assim não tem medo de arriscar-se, com “Romaria”, em redondilhas típicas da tradição poética do sertanejo: “O caminho que percorro / não é o da Rosa dos Ventos, / pois ele surge do nada, / de acordo com o momento”.
Aí é que se percebe a maturidade e o equilíbrio de um escritor que reconhece a poesia atual como a reunião de toda a história literária, um poeta que não se guia por extremismos. O seu constante caminhar tem sido guiado, como ele mesmo afirma nos versos acima, pelas curvas e espantos que encontra em sua vereda de aprendizagem. Mantém, entretanto, uma invejável coerência em seus quatro livros, superando-se em cada um deles.
Leitor assíduo, visita os jardins da poesia, dos mandacarus e das algarobeiras, colhendo aqui e ali o pólen da inspiração. Porém não deixa de se alimentar fortemente daquilo que foi a sua infância, a sua gente, sua história e formação. José Inácio é, esteja onde estiver, o catingueiro, o vaqueiro, o aboiador dos desertos e dos labirintos sertanejos. O tempo inteiro está no seu nascimento em Olho d’Água do Pai Mané, na infância em Palmeira dos Índios, na adolescência da Bahia, em Maracás. O vaqueiro, que leva em si, o persegue e o constrói. Em “Marcação”, tange na memória todo o gado de sua história; marca a si mesmo com o ferro eterno da poesia.

Um matuto sem eira nem beira,
labutando com palavras,
vaquejando boiadas de signos
por caatingas labirínticas
numa peleja sem-fim.
Invoca o gado invisível
numa toada aflita,
e grafa com pena e tinta
aquilo que a poesia marca,
a ferro e fogo, em sua alma.

O sertão e o sertanejo são uma constante em sua obra. O centauro de que tanto fala nada mais é do que o vaqueiro e o seu cavalo fundidos num único e harmonioso ser. No prefácio de Decifração de Abismos, já era elogiado por essa ligação tão forte que tem com suas origens. “Se alguém quiser ser universal”, escreveu Ruy Espinheira Filho, parafraseando Tolstoi, “que escreva sobre sua aldeia”. Ruy ainda acrescenta naquela introdução que, mais que sobre sua aldeia, JIVM escreve com as emoções oriundas de lá.
Mas há algo mais a ser dito sobre essa última publicação. Percebemos, pelo menos, duas características que devem ser consideradas em A infância do Centauro, por se tratar de traços distintivos em relação aos outros três livros. A primeira é a entrada, com maior freqüência, de poemas curtos, poemas de dois ou três versos como “Pureza” e “A Interrogação de Moisés” e, até mesmo, com um único verso, como é o caso de “Quarto da bagunça”: “Eu não sei nem por onde começar...”
A outra peculiaridade que merece alusão é o aprofundamento em questões metafísicas e espirituais. Esse não foi um acontecimento súbito, pois se trata de uma característica já observada desde Códigos do Silêncio. Contudo, os questionamentos filosóficos ganham força a cada publicação e, como já era de se esperar, mais do que nunca o poeta busca a si dentro do sertão de si mesmo e do universo: “Eu preciso de um espelho: / olhar no fundo dos olhos / e ver bem dentro de mim: / quero beijar minha sombra // (...) Sou a criação de Deus: / barro que sonha odisséias. / Em minha íris o Cosmo”.
E o que esperar de um poeta em constante edificação? Que rumo levará a escritura desse centauro das plagas sertanejas? Embora as coisas vindouras tenham a dúvida por essência, a coerência de José Inácio Vieira de Melo nos permite arriscar que os sertões continuarão a rondar os seus textos, que o mergulho filosófico ficará cada vez mais intenso e que este concriz continuará fazendo aquilo que talvez seja o papel do poeta contemporâneo: “Quebrar todo e qualquer cabresto, / romper a barreira da forma, / caminhar para além da palavra”.


Vitor Nascimento Sá é poeta e professor de Literatura. É um dos criadores e dirigentes do Grupo Concriz (http://grupoconcriz.blogspot.com), equipe de poetas e recitadores da cidade de Maracás, na Bahia.

terça-feira, 7 de outubro de 2008

VERSOS E IMAGENS DO CAVALEIRO DE FOGO

Marcos Uzel

Fotografia: Ricardo Prado José Inácio Vieira de Melo amplia universo temático em nova obra:
"Ainda permaneço na casa do sertão, mas o pé ficou mais fincado no surrealismo".


Um vaqueiro do sertão invade a paisagem e faz uma leitura do mundo a partir do caminhar do cavalo. Através dele, o poeta José Inácio Vieira de Melo, um alagoano radicado na Bahia há quase 20 anos, valoriza a identidade do homem nordestino com sua montaria ao galopar pelo universo místico e mítico do seu novo livro, A infância do Centauro. O sertanejo das páginas é também um cavaleiro medieval e essa representação poética tornou o autor mais próximo do surrealismo, atraído pela sua pluralidade de sentidos e significados.
“Este é um livro de transição. Ainda permaneço na casa do sertão, mas o olhar está sendo outro. O pé ficou mais fincado no surrealismo, que é um prato cheio de possibilidades”, destaca o poeta nascido em Olho d’Água do Pai Mané, povoado do município de Dois Riachos, em Alagoas. Aos 39 anos, José Inácio é um dos representantes mais prestigiados da nova geração da literatura baiana. As orelhas de A infância do Centauro trazem comentários elogiosos de nomes de peso como Hélio Pólvora, Ruy Espinheira Filho, Ildásio Tavares, Lêdo Ivo, Moacyr Scliar, Hildeberto Barbosa Filho, Olga Savary e Marco Lucchesi.
A convite do Ministério da Cultura da Colômbia, ele viaja em dezembro para o XI Festival de Poesia em Cartagena de Índias, na Colômbia, alavancando sua primeira participação em um evento internacional. Ao atravessar o sertão das palavras, José Inácio tem evoluído a cada galopada e se interessado por outras tendências, mas preserva a mesma necessidade de mostrar o que lhe causa estranhamento e encantamento em suas observações sobre a existência humana. “Há uma caminhada (com a bifurcação aparecendo) e o caminhante (que traçou uma meta e está em busca de alcançar uma graça). Não consigo viver sem poesia”, dimensiona.
Ao escrever o prefácio de A infância do Centauro, o escritor cearense Ronaldo Correia de Brito destacou essa coerência: “José Inácio nunca sabe se mora numa fazenda de criação de gado ou se está perdido em periferias. Em qualquer latitude que se mova é o mesmo poeta com sua bagagem de pastoral e modernidade”. As buscas, naturalmente, trouxeram peculiaridades para o novo livro, composto de 81 poemas distribuídos por sete seções, nas quais o poeta interessado no surrealismo também glorifica a companhia de seu filho (notadamente em Herança) e contempla os encantos de suas musas (em Harém).

CHAVE - Um bom exemplo das particularidades do livro é a seqüência poética de Chave, o quarto bloco, formado por textos curtíssimos – uma característica pouco comum na obra do autor. “Somente os olhos dizem o que as palavras sonham”, sintetiza em Pureza. A concisão chega a um único verso em Quarto da bagunça (“Eu não sei nem por onde começar...”), encerrando o quarto capítulo. As cinco primeiras seções reúnem 41 poemas inéditos. As duas últimas contêm uma seleção extraída de Códigos do silêncio (2000), Decifração de abismos (2002) e A terceira romaria (2005), trabalhos anteriores de José Inácio.
As veias mais expostas, porém, são as que formam o conteúdo místico e mítico da publicação. “Essa dimensão é muito forte, é grande. A minha intenção é que seja o todo. Busquei criar uma identidade poética a partir desses elementos”, enfatiza o autor, que assume a persona do Cavaleiro de Fogo (fogo, aliás, é o significado do nome Inácio) para unir o homem do campo (o vaqueiro) ao universo mitológico (na figura do centauro). A intenção de criar uma poética já é anunciada na própria capa do livro (com ilustrações do artista plástico Juraci Dórea), na qual o galopante do sertão aparece também como um cavaleiro medieval.
“Tudo isso é muito espontâneo em mim”, afirma o criador do belo poema Centauro escarlate, cavalgando existencialmente em trechos como estes: “O teu centauro te espera/ e o mundo é tudo o que a gente percebe:/ é só sair descobrindo/ o que nunca vai ser teu (...) Há de existir um lugar onde os teus mistérios possam descansar”. Como resumiu bem o falecido poeta Gerardo Mello Mourão na contracapa da obra, “José Inácio Vieira de Melo sabe que o poeta é o fundador dos seres. Só ele pode trazer dos abismos a decifração de todas as formas do ser, para expressá-las na linguagem pura da metáfora”. Jornalista, co-editor da revista de arte, crítica e literatura Iararana e colunista da revista Cronópios, José Inácio tem dado sua contribuição à produção cultural baiana. Em 2005, coordenou, ao lado dos escritores Aleilton Fonseca e Carlos Ribeiro, o Porto da Poesia, na VII Bienal do Livro da Bahia. Em Salvador, está à frente do projeto Poesia na Boca da Noite, que conta com a adesão de poetas de todo o país. Além de ter suas criações publicadas em jornais, revistas e sites do Brasil e do exterior, ele foi selecionado recentemente para integrar a coleção Roteiro da Poesia Brasileira, da editora Global.


Marcos Uzel é jornalista.

Texto publicado no jornal Correio da Bahia, em Salvador, em 28 de julho de 2007.

JIVM - CENTAURO ESCARLATE

Ilustração: Juraci Dórea
CENTAURO ESCARLATE


O teu centauro te espera,
monta em seu dorso
e vê o mundo pelos olhos da esfinge:
és o enigma, não o decifrador.

A gente se enche de calo,
a gente pensa que sabe,
a gente se desespera até,
mas não abre mão de estar aqui.

O teu centauro te espera
e o mundo é tudo o que a gente percebe:
é só sair por aí descobrindo
o que nunca vai ser teu.

E quando for noite alta
e os acordes de uma aquarela
luzirem dentro de teu espírito,
deixa o centauro que habita em ti
galopar, galopar, galopar
e transcender a ti e as tuas explicações.

Há de existir um lugar
onde os teus mistérios possam descansar.


JOSÉ INÁCIO VIEIRA DE MELO